Aspectos jurídicos dos prontuários médicos: responsabilidades e limites
por Guilherme Zanotto 29/05/2025
O Prontuário Médico: Conceito, Natureza Jurídica, Importância e Responsabilidade
O prontuário médico é um documento essencial no contexto da saúde. Ele reúne, de forma organizada e cronológica, todas as informações relevantes sobre o atendimento ao paciente, como anamnese, exames, diagnósticos, prescrições e evolução clínica. Segundo a Resolução CFM nº 1.638/2002, trata-se de um registro legal, sigiloso e científico, que permite a comunicação entre os profissionais de saúde e assegura a continuidade da assistência.
Do ponto de vista jurídico, o prontuário possui natureza mista: embora contenha dados privados do paciente, resguardados pelo direito à intimidade e à privacidade (art. 5º, X, CF/88), ele também tem importância pública, pois permite o controle e a fiscalização das atividades médicas. Isso significa que tanto o paciente tem direito de acesso a seus dados, quanto as instituições de saúde e os profissionais têm o dever de garantir a guarda, a confidencialidade e a disponibilidade dessas informações.
Historicamente, os registros médicos evoluíram muito, especialmente com a institucionalização da medicina científica no século XIX e, mais recentemente, com a digitalização e o uso de sistemas eletrônicos (Lei nº 13.787/2018). Hoje, além de sua função assistencial, o prontuário tem relevância administrativa, científica, jurídica e ética. No Brasil, diversas normas estabelecem a obrigatoriedade do prontuário, incluindo o Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 2.217/2018) e normas técnicas do CFM e da ABNT. Entre os requisitos mínimos, destacam-se: identificação do paciente, registros detalhados e claros das condutas médicas, diagnósticos, prescrições e consentimentos informados.
A Responsabilidade dos Profissionais e das Instituições
A responsabilidade pelo correto preenchimento, guarda e sigilo do prontuário médico é primordial. O documento não é apenas uma formalidade, possui peso probatório em processos judiciais e ético-disciplinares. Ou seja, um prontuário bem elaborado pode proteger o médico de acusações injustas; já um prontuário omisso, incompleto, rasurado ou falso pode ser a base para punições severas.
Nesse viés, do ponto de vista civil, o médico e a instituição podem ser responsabilizados por danos causados ao paciente em razão de falhas no registro ou na guarda do prontuário, incluindo perdas materiais, danos morais e danos à imagem. Assim, o paciente tem direito a indenização se sofrer prejuízos por informações equivocadas, omissões ou vazamentos indevidos. Já no aspecto penal, a adulteração ou falsificação de prontuário pode configurar crimes como falsidade ideológica (art. 299, CP), violação de segredo profissional (art. 154, CP) e até fraude processual, dependendo do contexto. Médicos e funcionários que manipulem dolosamente os registros respondem individualmente por suas condutas.
Por outro lado, no campo ético, o Código de Ética Médica proíbe expressamente rasuras, omissões intencionais e falsas declarações. A violação dessas normas pode gerar sanções disciplinares, que vão de advertência até cassação do registro profissional, com sérias consequências para a carreira.Além disso, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) reforça a necessidade de tratamento seguro das informações pessoais e sensíveis, como os dados de saúde, impondo às instituições obrigações de segurança, transparência e respeito à privacidade.
Portanto, é imprescindível que os profissionais e as instituições de saúde adotem práticas rigorosas no preenchimento, no acesso e na guarda dos prontuários, sob pena de serem responsabilizados em múltiplas esferas.
Conclusão
Em suma, o prontuário médico, mais do que um simples documento administrativo, configura-se como um instrumento essencial para a prática médica segura e responsável. Ele resguarda não apenas os interesses e direitos do paciente, mas também os do médico e da instituição hospitalar, funcionando como um registro técnico, ético e jurídico da assistência prestada. A natureza jurídica híbrida do prontuário confere-lhe status especial, sendo simultaneamente patrimônio informacional do paciente e documento de controle e fiscalização para os órgãos competentes.
Nesse viés, no campo da responsabilidade civil, os prontuários assumem papel central como meio de prova, seja para exonerar o médico e a instituição em eventuais alegações de falhas, seja para comprovar atos de negligência, imprudência ou imperícia. Um prontuário incompleto, rasurado, omitido ou fraudado não apenas fragiliza a defesa do profissional de saúde, mas também pode ser entendido, por si só, como indício de culpa, ensejando indenizações por danos materiais, morais e estéticos ao paciente lesado.
Ainda, no âmbito ético-disciplinar, os Conselhos Regionais de Medicina utilizam o prontuário como elemento central na apuração de infrações éticas. O médico que falha na adequada elaboração, conservação ou disponibilização das informações essenciais ao paciente e ao Conselho sujeita-se a sanções como advertência, suspensão ou até cassação do registro profissional.
Por fim, observa-se que a responsabilidade oriunda do prontuário médico transcende a mera formalidade documental. Na verdade, em um cenário de crescente judicialização da saúde e de intensificação das demandas por transparência e proteção de dados, torna-se imprescindível que profissionais e gestores hospitalares desenvolvam uma cultura organizacional voltada para a excelência no manejo dos prontuários, incorporando protocolos claros, capacitação contínua e tecnologias seguras, alinhadas às melhores práticas assistenciais e jurídicas.
Referências
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