Responsabilidade Corporativa na Saúde: Quando o erro humano vira culpa da pessoa jurídica
por Lorena Soares 12/06/2025
Introdução
Em 2024, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) registrou 74.358 ações por erros médicos, um aumento de 506% em relação a 2023, equivalente a 203 processos diários e reflexo das 55.000 mortes anuais por falhas evitáveis.
O setor da saúde é um ambiente complexo. Prova disso é que os diagnósticos equivocados ou as falhas em equipamentos podem acarretar em ofensas graves à saúde do paciente, o que enseja no dever de reparação por danos causados. A responsabilidade civil é a questão principal do tema em tela, visto que indaga-se: quem deve responder, a instituição hospitalar ou o profissional de saúde? Este artigo analisa a atribuição da responsabilidade corporativa no setor da saúde, com base no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. Além disso, enfatiza a distinção entre a obrigação da instituição hospitalar e do profissional de saúde.
CONTEXTO DA RESPONSABILIDADE CORPORATIVA NA SAÚDE
No que tange à responsabilidade civil dos hospitais, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no Recurso Especial nº 1.832.371, é que as instituições hospitalares são responsáveis pelas obrigações diretamente assumidas pelo complexo hospitalar, de maneira que a sua responsabilidade está limitada ao fornecimento de recursos materiais, como os equipamentos cirúrgicos, e humanos auxiliares, como as equipes de apoio. Logo, o dever de cuidado expressa-se na prestação de serviços médicos adequados e na supervisão do paciente.
A hipótese acima reflete a responsabilidade objetiva da instituição que surge somente em decorrência de defeito no serviço prestado, conforme dispõe o art. 14, caput, do CDC. Na responsabilidade objetiva, o dever de indenizar surge com a comprovação do nexo causal, independente da comprovação de dolo ou culpa.
Ainda segundo o STJ, os atos técnicos praticados pelos médicos, sem vínculo de emprego ou subordinação com o hospital, são imputados ao profissional pessoalmente, eximindo-se a entidade hospitalar de qualquer responsabilidade, conforme o previsto no art. 14, § 4º, do CDC.
Entretanto, no caso em que os atos técnicos defeituosos foram praticados pelos profissionais da saúde empregados pelo hospital, é possível a ocorrência de responsabilidade solidária entre a instituição hospitalar e o profissional responsável, uma vez apurada a sua culpa.
QUANDO O ERRO HUMANO IMPLICA A PESSOA JURÍDICA
Em conformidade com Miguel Kfouri (2023), o Código de Defesa do Consumidor (CDC) tornou viável a percepção da responsabilidade civil médica como um contrato. Desse modo, se o paciente não progredir, mesmo após o uso adequado dos métodos, isso pode indicar inadimplência e resultar na obrigação de indenizar.
Por esta razão, o entendimento está alinhado com a concepção de que a relação entre médico e paciente é uma relação de consumo, sujeita às regras e regulamentações feitas, o que reforça a ideia de uma responsabilidade mais direta e contratual.
Em 2024, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) registrou 74.358 ações por erros médicos, um aumento de 506% em relação a 2023, refletindo a crescente judicialização de falhas organizacionais. Nesse cenário, erros humanos no setor da saúde, como diagnósticos equivocados ou uso indevido de equipamentos, frequentemente, transferem a responsabilidade do profissional para a pessoa jurídica, quando decorrem de falhas sistêmicas.
Isto posto, é exemplo de falha sistêmica, a insuficiência de treinamento, como a ausência de capacitação para operar equipamentos médicos, pode levar a erros graves, como administração inadequada de medicamentos, que causam 14% dos eventos adversos (SOBRASP, 2022). Cita-se ainda que a falta de supervisão adequada, como equipes sem liderança definida, pode elevar os riscos de falhas cirúrgicas. Enquanto isso, a ausência de protocolos operacionais, como os checklists de esterilização, contribui para infecções hospitalares, as quais são responsáveis por 30% dos eventos adversos graves (IESS, 2017). Por fim, a negligência na manutenção de equipamentos, muitas vezes mal regulada em contratos, amplifica esses riscos.
À critério de exemplificação, segundo o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a responsabilidade civil do hospital nos casos de infecção hospitalar é objetiva, porque embasada na teoria do risco da atividade. Basta a demonstração da falha na prestação do serviço, a relação de causalidade e o resultado lesivo, conforme preveem os arts. 14 do CDC e 186, 187, 927 e 932, inciso III, do CC.
Por isso, o compliance é essencial para mitigar os riscos envolvidos na atividade médica e hospitalar. Além disso, os programas de integridade, com auditorias regulares e treinamento, ajudam a prevenir falhas sistêmicas.
Conclusão
O aumento das ações judiciais por erros médicos revela a fragilidade da governança no setor da saúde, no qual falhas humanas frequentemente implicam na responsabilização das pessoas jurídicas. Sob o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor, as instituições hospitalares enfrentam a responsabilidade objetiva por falhas sistêmicas, como treinamento insuficiente, supervisão deficitária, protocolos inadequados ou manutenção negligente de equipamentos. Os profissionais de saúde, sem vínculo empregatício, por sua vez, respondem individualmente. Enquanto isso, àqueles vinculados respondem sob o crivo da responsabilidade solidária.
Assim, as leis e normas aplicáveis ao setor da saúde elevam a exigência pelo compliance, de modo a levar hospitais e clínicas a adotarem padrões de governança para mitigarem os riscos da responsabilidade corporativa. A assessoria jurídica, nesse contexto, é indispensável para guiar as empresas de saúde em um caminho seguro e responsável para prevenir erros e preservar o bem mais precioso — a vida.
REFERÊNCIAS
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